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Um dos principais riscos nesse tipo de pescaria é de a mangueira de respiração se enroscar nos recifes ou ser cortada pela hélice do barco. A comunicação com o mangueirista é feita por meio de puxões. (Jonne Roriz/Estadão) |
A pesca de mergulho com compressor tem potencial para ser a forma mais seletiva e sustentável de pescaria no mar, desde que a seleção dos peixes seja feita de forma ecologicamente correta, sem prejuízo para a reprodução das espécies. O problema no caso das garoupas e badejos, que são os alvos favoritos dessa atividade, é que os peixes mais visados pelos caçadores são justamente aqueles que não se deveria matar, segundo o biólogo Matheus Freitas, especialista nessas espécies.
Os badejos, garoupas, chernes e outros peixes da mesma família, chamada Epinephelidae, são hermafroditas. Todos nascem fêmeas, e apenas alguns indivíduos se tornam machos dentro de uma população ao longo do tempo. São, normalmente, os peixes maiores e, portanto, os mais cobiçados pelos caçadores.
"Quando o pescador mergulha, ele seleciona os maiores peixes, que têm o maior valor agregado. Se você pensar que, para essas espécies, os peixes maiores são quase sempre os machos, o impacto dessa seleção na dinâmica populacional é potencialmente muito grande", afirma Freitas, pesquisador da Rede Abrolhos e presidente do Instituto Meros do Brasil. "Estão matando as galinhas dos ovos de ouro. Você pode ter o número de fêmeas que quiser, ovulando por toda parte; se não tiver um macho para fertilizar todos esses óvulos, não adianta nada."
Nessas espécies, segundo ele, a proporção é de um macho para cada dez fêmeas, podendo chegar a 1 para 15. Quando um macho é removido da população, uma fêmea dominante muda de sexo para ocupar seu lugar, mas essa transformação não é imediata, e seu efeito prático só será sentido no ciclo reprodutivo do ano seguinte. As garoupas e badejos normalmente vivem dispersos, e só se reúnem em locais e momentos específicos de cada ano para formar grandes cardumes, conhecidos como agregações reprodutivas, em que os gametas (óvulos e espermatozoides) são liberados simultaneamente na água, deflagrando um processo de fertilização em massa.
Por esse e outros fatores, Freitas defende que a pesca de mergulho com compressor seja regulamentada, ou até mesmo proibida, com tamanhos mínimos e máximos de captura estabelecidos para cada espécie.
Legalidade. Do ponto de vista legal, a pesca de compressor navega por uma área cinzenta. A atividade é proibida explicitamente para a pesca da lagosta, mas não há nenhuma regulamentação sobre ela para a captura de peixes - nem permitindo, nem proibindo. "É uma pesca marginalizada", resume Freitas. Procurado pelo Estado, o Ministério da Pesca e Aquicultura disse que a prática é irregular.
Segundo Freitas, não há nenhuma instrução normativa ou outro instrumento legal que estabeleça períodos ou tamanhos mínimos (muito menos máximos) de captura dessas espécies na região dos Abrolhos. A única exceção é um acordo de pesca firmado pelos comunitários da Reserva Extrativista Cassurubá, de abril de 2013, que estipula tamanhos mínimos de captura por pesca de mergulho para seis espécies, incluindo o badejo (63 cm), a garoupa (39 cm) e o dentão (34 cm).
Abrolhos, segundo ele, é a única região do Brasil onde ainda é possível encontrar essas espécies em números minimamente significativos comercialmente - e só porque os pescadores estão se arriscando em águas mais profundas e distantes para caçá-las. A "sorte" de Abrolhos, conclui Freitas, é que as agregações reprodutivas ocorrem no inverno, justamente nos meses de pior condição meteorológica para navegação e pescaria. Ainda assim, todas são consideradas ameaçadas em escala regional pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN).
Papagaio ameaçado. Pescadores locais têm percepções diferentes sobre as condições de saúde dos estoques pesqueiros da região. Há quem diga que nada mudou: "Pra mim tá igual, porque todo ano eu acho uma área nova para pescar", avalia Franco. Assim como há aqueles que enxergam um esgotamento crescente: "Acabar acho que não acaba não, mas diminuiu muito desde que eu comecei a pescar, uns 10 anos atrás. Eu diria que hoje tem uns 20% de peixe do que tinha antigamente", calcula Zeca.
A espécie que mais preocupa os biólogos e ambientalistas atualmente é o budião-azul, um simpático peixe-papagaio que é fácil de ser arpoado e, para sua infelicidade, tem uma carne consistente e saborosa ao paladar humano. Até a virada do século, ele vivia tranquilo, em abundância, nos recifes da região. Nos último 15 anos, porém, à medida que os estoques de outros peixes tradicionais da pesca foram minguando em águas mais rasas e acessíveis, ele foi ganhando espaço no menu comercial dos caçadores, tornando-se uma das espécies mais pescadas dos Abrolhos; item básico no cardápio de todos os restaurantes da região.
"É um caso clássico de destruição da cadeia trófica (alimentar)", afirma Freitas. "Os recursos do topo da cadeia vão se exaurindo e os predadores - neste caso, os seres humanos - começam a pescar nos níveis mais baixos. O budião só entrou no cardápio da pesca porque os outros peixes começaram a desaparecer."
As garoupas são peixes carnívoros. Já os papagaios, como o budião-azul, são herbívoros. Eles usam seus bicos - parecidos mesmo com o de um papagaio - para se alimentar das algas que crescem sobre os recifes e competem por luz e nutrientes com os corais, como se fossem ervas daninhas num jardim - um serviço indispensável para a saúde dos ecossistemas recifais, com implicações para a sobrevivência de várias outras espécies. A experiência mostra que, na ausência desses herbívoros, o risco é grande de os recifes de coral se transformarem em "matagais marinhos", cobertos de algas.
Os budiões podem ser capturados com redes nos recifes mais rasos, durante a maré baixa, por meio de uma técnica de cerco. Mas o que está "maltratando" mais a espécie é a pesca de mergulho - não só de compressor, mas também de apneia -, segundo o um dos pescadores mais tradicionais de Abrolhos. "De rede, a gente pesca o budião só na maré de lua, a cada 15 dias. Não pesca, todo dia", diz Dilson Cajueiro, o seu Mandi, de 59 anos, nascido e criado nas praias de Caravelas. "O que maltrata mesmo é o mergulho, que mata todo dia e mata muito budião pequeno, que não dá nem um palmo de tamanho."
Ele reconhece que a quantidade do peixe diminuiu muito nos últimos anos. "Se você só tira, tira, tira toda hora e não planta nada no lugar, não tem jeito mesmo. Uma hora acaba", raciocina seu Mandi, que diz ter sido "o primeiro a tirar filé de budião" em toda a região, muito antes de o peixe ter virado moda.
"A situação do budião é urgente", corrobora Freitas. Segundo ele, há uma expectativa grande de que a espécie seja incluída na nova lista de fauna ameaçada de extinção do Brasil, que está sendo elaborada pelo Ministério do Meio Ambiente. Pela IUCN, ele já é classificado globalmente como "em perigo".
Segundo Guilherme Dutra, diretor do Programa Marinho da ONG Conservação Internacional (CI-Brasil), que opera há mais de dez anos em Caravelas, em 2000 o budião-azul representava 30% da biomassa total (o conjunto de todos os seres vivos) dos recifes rasos de Abrolhos. "Hoje não sabemos qual é esse porcentual, exatamente, mas já foi reduzido a menos da metade, com certeza", diz.
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FONTE: Texto de Herton Escobar e Jonne Roriz - O Estado de S. Paulo, disponível também aqui.