segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

SOS Mata Atlântica publica levantamento que mostra que municípios baianos foram os que mais desmataram a Mata Atlântica em 2016

Na região da Mata Atlântica estão localizados 3.429 munícipios brasileiros, situados em 17 estados, onde vivem cerca de 145 milhões de pessoas. Além delas, os remanescentes de florestas originais abrigam milhares de espécies de animais e plantas, algumas, ameaçadas de extinção. É este ecossistema que garante ainda água e ar limpo para seus moradores.

Infelizmente, hoje só resta 8,5% dessa importante floresta que já cobriu grande parte do Brasil.

Anualmente, a Fundação SOS Mata Atlântica faz um levantamento sobre o desmatamento da floresta e indica quais os municípios derrubaram mais mata nativa. Pois ontem, 13/12, a entidade divulgou o estudo realizado, que mostra a situação entre 2015 e 2016.

O relatório, que tem parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), revela que 598 cidades desmataram o bioma no último ano, e na grande maioria, eram municípios da Bahia. Eles representaram 40% do total do desmatamento no período, ou seja, 130 cidades baianas derrubaram 12.420 hectares de florestas nativas.

A cidade histórica de Santa Cruz Cabrália, no sul do estado, onde foram realizadas as primeiras missas do Brasil, foi a campeã deste ranking lamentável. Eliminou de 3.126 hectares. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE), as principais fontes do município vem de serviços (turismo) e agropecuária.

A vice-liderança do levantamento do desmatamento feito pela SOS Mata Atlântica apresenta a baiana Belmonte, que também fica na chamada Costa do Descobrimento. Ela derrubou 2.122 hectares de mata nativa.

Na sequência, entre os dez municípios que mais desmataram, estão localidades de Minas Gerais e do Piauí.

“A Mata Atlântica é o bioma mais ameaçado do país. Um total de 72% da população brasileira vive na Mata Atlântica, assim como mais da metade dos animais ameaçados de extinção do país. Ao desmatar, estamos prejudicando nosso próprio bem-estar e qualidade de vida”, lamenta Marcia Hirota, diretora executiva da Fundação SOS Mata Atlântica.

Todas as informações detalhadas sobre o estudo estão disponíveis no site e aplicativo Aqui Tem Mata?, que oferece uma busca personalizada por meio de mapas interativos e gráficos.

Campeões do desmatamento da Mata Atlântica em 2016
1˚) Santa Cruz Cabrália (BA)
2˚) Belmonte (BA)
3˚) Manoel Emídio (PI)
4˚) Wanderley (BA)
5˚) Porto Seguro (BA)
6º) Águas Vermelhas (MG)
7º) Canto do Buriti (PI)
8º) Alvorada do Gurguéia (PI)
9º) São João do Paraíso (MG)
10º) Jequitinhonha (MG)

FONTE: Conexão Planeta, disponível também aqui.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Frans Krajcberg e a arte da dor - texto da Carta Capital

Foto: Leonardo Rodrigues/e-SIM
Frans Krajcberg, aos 17 anos, saiu com o tio para cumprir uma rotina de fim de verão. Foram caçar, os dois, nas florestas do vizinho Parque Nacional de Kozienice, ao lado da cidade natal de Frans e a umas duas horas de Varsóvia para quem subisse de barco o sereno Rio Vístula.

Ao voltarem para casa e para a família, descobriram que não havia nem casa nem família. A blitzkrieg promovida pelos nazistas em território polonês nos primeiros dias de setembro de 1939 havia varrido do mapa todos os traços da família. Os Krajcberg eram judeus. Os que não foram presos e trucidados de imediato se viram compelidos a fugir ou a cair na clandestinidade, como tratou de fazer o tio de Frans.

Sozinho, desenraizado para sempre, não restou ao garoto sequer o registro consolador da memória. Ela foi se ofuscando, pouco a pouco, e, à falta de qualquer registro fotográfico dos pais, das irmãs, dos parentes próximos, Frans virou um zumbi da História, uma melancólica criatura sem passado.

Nunca se lembrou das feições no entanto tão familiares, ao pé da letra. Uma única reminiscência o assombraria o resto da vida: o hálito da mãe. Ela era militante do Partido Comunista Polonês e, antes mesmo da invasão alemã, via-se obrigada a sumir periodicamente de casa por razões de segurança. Ao reaparecer, dedicava-se ao prosaico dever de botar os filhos na cama e lhes sussurrar contos de fadas ao pé do ouvido. Frans iria sentir para sempre a proximidade quente do rosto materno a lhe bafejar fábulas imaginárias com o pendor de embalsamar os medos da realidade.

De tudo o que ouvi de Frans Krajcberg, esta é a história que mais me emociona – e que mais contundentemente exprime a natureza íntima desse solitário por destino e por vocação, a quem só mesmo a arte veio trazer, um dia, o sentido de uma missão gregária, comunitária, plena de humanismo. A vida fez de Krajcberg um bicho do mato, acuado, assustado. A arte foi seu escudo protetor – e seu berro libertador.

Sonho

Estive com ele algumas vezes, no Sul da Bahia, no Rio, em São Paulo, em Paris, na banlieue parisiense, o suficiente para me fazer entender o privilégio de tais encontros. O jornalismo é uma profissão sorrateira, ao mesmo tempo em que pode surpreender você com o acesso a um gênio de vez em quando conduz a gente até um, digamos, Roberto Jefferson ou uma Janaina Paschoal. O acaso que recaiu em Frans Krajcberg é desses momentos que abençoam para sempre o ofício da reportagem.

Krajcberg era aquele velhinho rabugento que nos esperava, ao fotógrafo Marcio Scavone e a mim, no meio de um vasto areal em que o máximo de verde possível eram uns retorcidos arbustos da família dos cactos. Aquela aridez tremenda, defronte ao mar da Bahia, em Nova Viçosa, vestia a utopia de Krajcberg: um jardim vegetal de pau-brasil tão espesso, tão frondoso quanto o que os portugueses haviam encontrado antes de decretarem a devastação da Mata Atlântica. Ele acreditava que uma floresta poderia renascer daquela inútil paisagem.

Tinham acabado de chegar mil mudas de pau-brasil, enviados por um parceiro de ilusão ecológica: o empresário Israel Klabin. Com ajuda de uma escavadeira manual, foi deitando em terra cada muda, uma a uma. O desafio de mil mudas não o intimidava. Ele tinha à época mais de 80 anos – com aparência de mais de 80. Mas parecia um guri ao escalar pela escada de madeira os dez metros até a casa que o arquiteto baiano Zanini Caldas plantou no alto de um pequizeiro magnificamente robusto em seus três metros de diâmetro.

Vegetal

Foram a cenográfica casa – à qual Krajcberg continuaria acessando mesmo após os 90 – e o sítio arenoso a que chamou de Natura que o persuadiram a fazer daquele rincão de Nova Viçosa sua morada. Dizia que os habitantes locais o tinham em conta de um excêntrico aborrecido – em especial, as sombrias autoridades da terra. O testemunho de seu isolamento era reiterado na casa de asceta, com uma sala, uma microcozinha e um catre encaixado no que poderia ser entendido como uma tentativa de mezanino.

Perguntei se ele não se sentia muito só, ali. “Não, agora, por exemplo, tenho um cobra morando aqui comigo”. Uma cobra? “O cobra, muito gentil, que acaba de me deixar um presente.” E me mostra, com orgulho afetuoso, a pele de cobra que pende, como um móbile, de uma das vigas do teto. Cobra muda de pele, a gente sabe. Krajcberg enxergava nisso a expressão de um carinhoso engenho.

A ideia de coabitar em 70 metros quadrados – incluindo a varanda que circundava a casa – com um animal viscoso e repelente, ainda que não fosse do tipo venenoso, acendeu em mim uma percepção que se acentuou quanto mais eu viesse a conhecer Krajcberg. Sua relação visceral, apaixonada, com os reinos da natureza.

Pode-se dizer que ele se identificava, dramaticamente, com o reino vegetal (as florestas calcinadas priorizaram sua obra escultórica, como se ele tomasse para si a dor delas) e com o reino mineral (o momento crucial para sua descoberta como artista foi emoldurando pedras, cascalho e terra em área mineradora de Itabira, MG, onde chegou a trabalhar no início dos anos 50). No entanto, em relação ao reino animal, se Krajcberg era capaz de se enternecer por um cobra, desconfiava mortalmente do bicho chamado homem. Este, sim, sabia ele, é capaz das piores atrocidades.

No seu acervo de coisas danificadas, os troncos chamuscados serviam de metáfora à destruição – física, material e também moral – causada pela guerra. No nosso primeiro encontro, em Nova Viçosa, ele descreveu o trauma da família desaparecida, naquele final de verão de 1937, e sua própria fuga em direção à União Soviética. Os vínculos da mãe com o PC lhe propiciaram a ilusão de um acolhimento cordial.

Destacaram-no para estudar engenharia militar, no Cazaquistão. Sabia-se, na verdade, que a trégua selada entre os nazistas e Stalin não duraria para sempre e que em algum momento os soviéticos entrariam na guerra. O jovem Krajcberg aprendeu a construir pontes. Aprendeu também o idioma cazaque. Ele nasceu falando polonês e, ao longo da vida, aprendeu também um pouco do russo, do alemão, do francês, do português. “Aprendi todos e não falo nenhum”, brincava, em comentário ácido, mas facilmente compreensível no cosmopolita idioma do afeto.

O esquecimento pode ser um bom curativo para as feridas da alma.Krajc-berg, consciente ou não, usou e abusou do expediente. Chegou a Berlim num dos batalhões adiantados do Exército Vermelho, mas, terminada a guerra, descarregou todas as suas condecorações, insígnias, estrelas e dragonas no rio de sua adolescência, como que a exorcizar toda aquela carnificina para cuja voragem fora arrastado.

No caso do ex-recruta Krajcberg, o bálsamo aquietador do esquecimento implicaria o desafio de preencher, daí para a frente, o vácuo de sua própria identidade. Logo no Pós-Guerra, buscaria na Alemanha, depois em Paris, o aprendizado que o nomeasse como artista. Pelo menos a solidariedade da sofrida diáspora judaica o aproximou de figuras como Chagal e Lasar Segall. Foi este que lhe recomendou um país distante chamado Brasil.

Monumentalidade

O aval do padrinho não lhe estendeu, de imediato, o tapete vermelho do universo das artes. Krajcberg se viu, em 1948, logo que chegou, morando num casebre no interior do Paraná e suando o sustento na fábrica de celulose da família Klabin. O ermitão se refugiava ali não no êxtase da criação, mas num lenitivo bem prosaico. “Eu era um cachaceiro”, me resumiu ele.

Em 1951, ainda assim emplacou duas telas suas na 1ª Bienal de São Paulo. Mas o Frans Krajcberg que o comércio das artes haveria de valorizar tanto– em paralelo com o apreço por sua militância ecológica quando ninguém sequer falava em ecologia – só iria despontar após as jornadas de iniciação à Amazônia, a primeira, em 1956, na companhia do publicitário Sepp Baendereck, e a segunda, em 1958, à qual se juntou o crítico francês Pierre Restany.

O clamor da selva brutalizada traduziu-se no Manifesto do Rio Negro, assinado por Krajcberg e Restany. O artista mimetizou a floresta. “A natureza amazônica recoloca a minha sensibilidade de homem moderno em questão”, disse. Nos troncos retorcidos, nos galhos agonizantes, nos cipós inertes, nos caules indefesos, na tinta vermelha de urucum, nos motivos indígenas, nos vestígios totêmicos sobreviventes das queimadas Krajcberg encontrou a angustiada poética de sua arte.

Arte que brotava do Brasil profundo, mas que logo irradiou para o mundo. Krajcberg naturalizou-se brasileiro, porém sempre se queixou de que o Brasil nunca o aceitou plenamente além do que considerava suas bizarrices de militante inoportuno. “Artista polonês...” – quando lia isso se enfurecia. Ainda bem que não estava aí para ler seus necrológios.

Entrevistei-o certa vez quando passou por São Paulo – para romper de vez com a metrópole de tanta iniquidade e tanta insensibilidade. Haviam-lhe prometido espaço digno para recepcionar algumas obras suas no mais ecológico recanto do Parque do Ibirapuera, o Viveiro Manequinho Lopes, mas a coisa foi ficando só na conversa. O prefeito, o ensaboado Gilberto Kassab, omitiu-se.

Krajcberg sentiu o golpe da dupla traição. Percebeu, a mais, que os podres poderes da Pauliceia já estavam à época mais encantados com uma contrafação chamada Bia Doria. Ela emulava sem o menor pudor a arte de Krajcberg e a clientela burguesa pagava alegremente pelo propósito decorativo da cópia deslavada. O maridão João Doria comandava as transações.

A França, sim, prestava-lhe um reconhecimento público, ainda que não espalhafatoso. Pude verificar a autenticidade dessa constatação. Encontrei-o em Paris logo depois de ter sido agraciado pela prefeitura do socialista Bertrand Delanoë com um espaço-museu na mesma vila que servira antes de abrigo para artistas – para Krajcberg, inclusive. O que os franceses chamam de impasse dá para um trecho mítico do Boulevard Montparnasse. Ali Paris passa a dar abrigo permanente, oficial, meritório, tanto a Krajcberg quanto às suas esculturas.

Estive lá ciceroneado pelo artista e por sua combativa marchande brasileira, Márcia Barrozo do Amaral. Havia certa excitação, porque na manhã seguinte o brasileiro que os brasileiros insistiam em chamar de polonês colheria mais uma homenagem de franceses que adorariam chamá-lo de francês (e Krajcberg não se importaria nem um pouco). O subúrbio de Arcueil, ao sul da capital, iria receber em festa uma escultura de Krajcberg e entronizá-la na Place de la Vache Noir.

Não era a primeira vez. No Parc de la Bagatelle, em Saint Denis, na halle de la Villette, em Seine-et-Marne, obras de Krajcberg desfrutam de uma visibilidade pública que aqui no Brasil se desconhece. Amigos locais foram se juntando no ateliê convertido em museu para se anteciparem às comemorações do dia seguinte. Fui apresentado a um casal simpaticíssimo. Informaram-me que ele é o PDG da maior óptica da Europa Ocidental.

Coerente com seu estilo de recato franciscano, o vegetariano Krajcberg propôs que o jantar fosse no invariável restaurante indiano próximo a sua casa. O jornalismo – escrevi aí acima – é uma profissão sorrateira, sujeita a surpresas boas e outras nem tão boas assim. Renunciar aos apelos gastronômicos de uma Paris naquela noite em troca de um poulet vindaloo au curry, propenso a esmerilhar qualquer paladar, é o tipo da coisa que só mesmo a presença docemente carismática de Krajcberg era capaz de justificar.

FONTE: Carta Capital, disponível também aqui.